AS DUAS ALMAS DE RODOLPHE HAFNER
À Henri de Régnier
De fato, Rodolphe Hafner teria mesmo duas almas? A mim, parecia
claro, mas eu sei que é uma suposição bem barroca. Toda espécie de coisas
respeitáveis como a religião, a filosofia, parecem estabelecer o contrário, de
que ele jamais poderia ter mais que uma, e além de tudo, segundo a doutrina; —
uma alma, ou nenhuma alma. Mas duas, é ridículo e louco.
Assim mesmo, eu creio que Rodolphe Hafner possuía duas almas que
habitavam seu corpo uma após a outra. Para dizer a verdade, a primeira não era
talvez muito boa para ele. Teria sido nesse caso uma espécie de alma errante,
substituindo momentaneamente, por uma força dos poderes ocultos, à sua própria,
a segunda. Se as coisas se passaram assim, essa alma errante,
erra sem dúvida ainda hoje pelo mundo, em busca de um novo corpo que a
acolha. Eu gostaria de a reencontrar, mesmo com o
risco de perder minha própria alma para essa substituta, — tão eu prezava
singularmente a primeira alma de Rodolphe Rafner.
Foi com essa alma que eu o conheci. De fato, onde o encontrei
primeiro? Eu não sei mais muito bem. Nós passamos longos tempos percorrendo o
mundo juntos. Por outro lado, minha memória torna-se verdadeiramente malvada
depois que fumo o ópio indiano em lugar do chinês. — Não importa,
eu me lembrarei de tudo em sua hora. Mas aquilo de que eu estou certo, é que
foi em um país crioulo. Senhores, vocês não sabem o que são os negros. Seres
moles e indolentes, que vivem em redes se balançando sob
palmeiras? — Não, não é nada disso! Eu não vou explicar o que é, pois
isso me fatigaria. — Ah, eis que me recordo: eu vi Rodolphe Hafner pela
primeira vez em New Orleans, uma cidade muito vibrante. Eu estava lá há oito
dias, vivendo na ociosidade. Uma noite, no salão dos Routh,
intrépidas pessoas da St. Charles avenue, a filha da
casa, que era minha amiga, me ofereceu para o dia seguinte um passatempo de
prazer assaz raro: ela fazia uma lista para um regulation
ring; (essas pessoas falam o inglês como as vacas
espanholas). Eles anunciavam o combate singular de duas jovens mulheres, duas
mulheres do melhor mundo, aliás, prontas a decidirem uma pequena diferença a
golpes de murros, perante um círculo de amigos e amigas. Essas matinês crioulas
dos ianques são surpreendentes. Eles não podem fazer nada a portas fechadas,
nem mesmo se agarrarem pelos cabelos. Então minha companheira me deu os
detalhes. Isso não era só mais um simples desafio esportivo, um pouco
extravagante. Não, era uma verdadeira batalha para que vencesse a melhor. Ódio,
ciúme, traição, eu não sei ao certo; e desafio a princípio. Pior, luta sem
piedade, forte, comovente e provavelmente feroz. Naturalmente eu tive que ir.
De fato, foi feroz e emocionante na medida dos desejos. As duas combatentes
se assemelhavam como duas gotas de água, mesmo tamanho, mesmo cabelo de ébano,
mesma tez resplandecente e quente, mesmos corpos vigorosos e ágeis, mesmos
perfis sensualmente animalescos e graciosos. Esse é o tipo único da Louisiana
crioula, muito sedutor aliás. Elas se atacaram
furiosamente, à inglesa, com as mãos endurecidas por grossas luvas de boxe, e a
cabeça e a garganta nuas. — Elas vestiam roupas usadas da ópera cômica,
idênticas, um uniforme para amassar: maiôs de seda negra, com feixes de cetim
bufantes e pequenas blusas claras guarnecidas de um pequeno rendado. Em um
quarto de hora, tudo ficou em farrapos. Elas se batiam como surdos enraivecidos
a se desfigurarem. Duas francesas teriam terminado em um fechar de olhos, e se
fosse preciso, com uma crise de nervos. Elas se aplicaram pacientemente
sessenta e cinco minutos contados, — seis rounds sem resultado, no sétimo o
nocaute. Fútil dizer que desde o segundo round o espetáculo foi mais repugnante que uma briga de
cães. As duas faces inchadas, sangrantes,
lamentáveis, os seios pisados, os ombros riscados de azul e
negro, e elas continuavam a se martelar com todas as suas forças, sem
gritos, sem lágrimas, como os selvagens que eles foram. E como eu me voltei
para o outro lado, enjoado, vi um pouco à distância, atento certamente, mas sem
esse vislumbre de ferocidade que brilha em todos os olhos crioulos ou ianques,
um homem magro e elegante, imberbe, cuja fronte curvava-se branca como marfim
sobre os soberbos cabelos negros, e cujos olhos esplêndidos, azuis safiras,
possuíam o reflexo metálico de duas lâminas de aço.
Eu era nessa época muito impulsivo, sem nenhuma defesa contra
minhas primeiras simpatias. Rodolphe Hafner me conquistou no mesmo instante,
tanto que fui direto a ele e lhe estendi a mão.
— Por que — disse eu. — Olha essa coisa repugnante?
Ele me considera por alguns instantes, sem nenhuma surpresa.
Depois, voltando seus olhos ao ringue:
— Esse é um prazer civilizado, — diz ele, — de perceber o instinto
primitivo mais a nu.
E ele aperta minha mão.
No instante seguinte, minha colega, a pequena Routh,
que devora com os olhos as duelistas, entrelaça seus dedos com os meus, nervosamente. Esse era o momento de um corpo a corpo
trágico, e na pressão dos dedos da criança, eu senti toda a sensualidade sádica
exasperada pelo brutal espetáculo. Hafner me havia apertado a mão mais
fortemente ainda, mas no aperto dele não havia nem sensualidade nem emoção. Ele
estava rigorosamente calmo e dono dos seus nervos. Nossas mãos se estreitaram
fortemente por simpatia somente, simpatia mútua e repentina. O que fez, aliás,
entre nós, desde aquele minuto, uma amizade extraordinariamente íntima que
durou por muito tempo, até a nossa separação.
— Que bizarro, — me disse ele ao cabo de um instante, desta vez
sem deixar de olhar a batalha. — Tudo isso não é em suma senão um corolário das
leis de Newton.
E é certo que se qualquer outro me tivesse dito essa frase
elíptica, eu teria sorrido sem compreender. Mas desde que Hafner a pronunciou,
ela se esclareceu instantaneamente em meu cérebro, como se me fosse comunicada
por algum sortilégio oculto, desde a dedução mental da origem até a sua
conclusão. Eu estava certo que foi o ciúme que havia posto uma contra a outra
das duas desafiantes na arena, e que, o ciúme não era outra coisa senão um
corolário do amor, podendo sem paradoxos conectar-se à atração dos sexos, forma
inestudada da atração universal, e de tudo isso que
se passava entre nós. O silogismo me pareceu evidente, — incontestável, e eu
respondi muito sinceramente.
— Por que bizarro? É natural.
Nossas mãos ainda não haviam se desprendido. Novamente eu senti
seu aperto, familiar dessa vez. E o pesar que levantava em meu coração, se
dissipou estranhamente a esse contato. Uma parte da sua calma me penetrou. Uma
misteriosa troca de eflúvios cerebrais se fez entre nós. E eu pude contemplar
como ele, sem paixão e com curiosidade. Houve uma trégua. As duas rivais
ofegantes molhavam-se com esponjas e limpavam-se como os animais de esporte. E
me pareceu que seus olhos olhavam para nós. Isso não foi mais que uma
impressão. Logo em seguida voltaram-se face a face. Esse foi o último round. Deus sabe
que um round
a nocaute é particularmente hediondo, ainda que eu olhasse sem esforço, como
Hafner. Esse não era mais um combate, mas sim uma execução. De antemão, o
vencedor já estava designado, e ele não fazia mais que abater e de bem
saciar-se com o sofrimento. Eu vi uma das rivais, embrutecida e obstinada,
tropeçar duas vezes sob os golpes triunfantes que lhe caiam sobre o rosto. Eu
vi seus punhos abandonarem a luta; seus cotovelos tentarem frente a sua fronte
a suprema defesa do instinto, o gesto patético da menininha que tenta se
esquivar de uma bofetada perversa; e finalmente seu corpo desfalecer, dobrar-se
e cair sob o golpe fatal que lhe arranca um gemido de animal dilacerado. Isso
foi o fim. Conduz-se a vitoriosa, somente um pouco menos machucada. E eu dei
novamente o braço a miss Routh
que palpitava.
Mas Hafner não me deixou mais. Ele quis ser apresentado à
filhinha.
E eu percebo somente agora que não sabia nada dele, nem mesmo seu
nome. Ele em seguida se apresenta: — Rodolphe Hafner, estrangeiro. — Ele não me
disse mais nada. Não me surpreendi pois sempre achei
burlesco o costume dos homens que minuciosamente nos informam da ocupação da
qual eles são escravos, e do leito no qual, outrora, seu pai deitou sua mãe
sobre o dorso. Como se eles tivessem ali algo do que se glorificar.
Nós comemos caranguejos juntos, no Chez Mers,
conhecem? A cervejaria do bairro inglês. E eu o ouvi conversar pela primeira
vez. Sua conversa era de um charme inexprimível. Não a loucura artificiosa dos
espirituosos, nem as frases desenvolvidas e substanciais dos profundos. Não,
mas de uma graça, uma ligeireza, uma poesia de sonho, com isso ou aquilo, ao
acaso das ideias, um paradoxo desconcertante, uma verdade sublime e nova, uma
crueza inesperada e aceitável, e, a cada ângulo do pensamento, o incomum e o
indecifrável, o mais além. A conversa de um fantasma que seria poeta, filosofo e homem. Aliás, eu não conseguiria dar a sensação
justa, e tudo isso que escrevi não se parece mais que uma careta de macaca ao
sorriso da Gioconda.
Quase imediatamente ele nos deixou, — eu digo quase imediatamente
porque isso se pareceu assim; na realidade, nós ficamos juntos até a noite.
Ele nos deixou para ir, diz ele: — fumar uma meia hora antes de
voltar para casa. — Ele jantaria na cidade.
— Em casa de quem? — Perguntei eu sem discrição e sem nem mesmo
pensar que isso não me dizia respeito.
— Em casa de Madame B., — disse ele sem hesitar. — Aquela que se
bateu há pouco.
E ele se foi, após me ter marcado um encontro para a noite. Desde
que ele partiu, constatei que miss Routh estava
amorosamente louca. Ela o via pela primeira vez e estava vivamente interessada.
E ela foi realmente sua amante, três dias mais tarde, quase por força, pois ele
não a queria.
* * *
O poder sedutor desse homem era realmente prodigioso. Desde a
primeira noite, eu soube que as duas mulheres do regulation
ring estavam se batendo por ele. Ele me confiou
sem mistério nem fatuidade. Não que fosse indiscreto, mas desde então não
éramos mais que um em dois corpos. Nessa primeira noite, ele me recebeu em sua
casa, na sua fumaria de ópio, um santuário que jamais abria a quem quer que
fosse. Contrário ao gosto de todos os fumadores que eu conheci, ele somente
apreciava fumar só. Extraordinariamente nós fumamos a dois, mas não houve em
verdade nenhuma troca: nossos dois pensamentos estavam tão bem aferidos um ao
outro, que nós não tínhamos necessidade de falar para entendermo-nos. E o
silêncio da fumaria não foi perturbado, apesar do intercâmbio constante dos
nossos assuntos.
E nós éramos todos, o um e o outro. Quando eu digo todos, pretendo
falar de um todo intelectual e sentimental. Pois essa vida exterior, suas
relações, seus antecedentes, sua fortuna, seu país, jamais me interessaram.
Mesmo seu físico nunca me foi familiar. Hoje, quando eu procuro me recordar de
sua silhueta, tenho consciência de que o que revejo é o perfil do último
Hafner, do outro, e não desse que foi anteriormente meu amigo absolutamente
íntimo.
Ora, o segundo Hafner; — no qual se alojou essa outra alma, eu o
vi por duas vezes ao todo e, por conseguinte, os explicarei a sua hora.
Mas o primeiro, é em meu ser e não em
meus olhos, que se imprimiu indelevelmente. Quase três anos inteiros nós não
nos separamos nem por uma semana. O que se seguiram de acasos inquietantes por
força dessa concordância, eu não poderia mais enumerar. Sua carreira, — de
fato, eu só saberia dizer que era qualquer coisa dentro das embaixadas, e aliás, foi por acaso que eu soube; — o levou
caprichosamente pelas cinco partes do mundo. Eu, eu não tenho nem profissão,
nem pátria e nem mesmo assim ele me confiou alguma região, algum continente,
nem um mar além dos que nos dois vimos juntos, talvez para que agora eu não os
associasse à sua lembrança. E se verdadeiramente sua alma, sua primeira alma, frequentou
os lugares que ele visitou outrora, é no mundo inteiro que me caberá
procurá-la.
Em toda à parte, a fumaria de ópio nos seguiria, a fumaria da
primeira noite. Vocês podem bem pensar que eu já havia visto as piores
fumarias. Mas eu jamais vi coisa parecida. As fumarias habituais são quartos
quase nus, atapetados de esteiras mais ou menos chinesas, ornamentadas de
lanternas, biombos ou para-sóis, e grandes o bastante para que caibam quatro ou
cinco pessoas. A nossa parecia uma tumba, e nossos dois corpos precisavam ficar
deitados costa a costa para caberem. Ela era em vime, com arcos e tecidos estendidos
sobre o vime. Isso se levava, desmontado e dobrado em uma caixa pequena.
Nenhuma esteira, somente um tapete de Aubussom.
Nenhum ornamento chinês, a não ser a seda com relevos que se arredonda num arco
baixo e recai como muralhas ao redor dos fumantes. — Hafner professava que o
ópio não é chinês, mas universal. — Essa seda bordada se impregnava rapidamente
da fumaça negra. As volutas, aprisionadas no espaço estreito, se saturavam dos
odores e da embriaguez, tão bem que após alguns cachimbos, nós não precisávamos
mais fumar: o ópio revolvido se mesclava à nossa respiração para penetrar nos
pulmões, e o sonho divino nos visitava sem mais esforço.
Por consequência, esse não seria para nós dois, o mesmo sonho?…
O ópio agia singularmente sobre Hafner. Algumas das sensações
habituais não correspondiam as suas. E portanto, essas
sensações habituais são multiformes, — eu desafio aqui todos os fumadores, pois
é uma estranha audácia falar do inédito a propósito do ópio. Mas na verdade,
Rodolphe Hafner, mesmo nisso, não se parecia aos outros homens.
A droga não lhe concedia a embriagues, — a embriagues normal que
nos fixa deliciosa, mas irresistivelmente a terra, ainda que mais ligeiro, mais
dócil, mais sutil que um espírito puro. — Se Rodolphe Hafner permanecia frequentemente
horas inteiras na fumaria túmulo, era para seguir nos caprichos ondulantes da
fumaça negra, o voo ativo dos seus pensamentos. E desde que lhe agradasse, ele
podia, sem sofrimento e sem náusea levantar-se, vestir-se e partir
imediatamente a seus afazeres.
Por consequência lógica, o ópio lhe negava a exteriorização, esse
dom maravilhoso do fumeur de evadir-se por uns
tempos da vida, da época e de si mesmo; de não ser mais um indivíduo, mas uma
parcela infinita de matéria pensante, estranha a todos
os corpos, e contemporânea, pela sua fantasia, à Cleópatra ou ao século XXX.
Hafner era sempre Hafner. Mesmo sendo um Hafner mais perspicaz, ou melhor pensador. Tal dentro da fumaria, tal em qualquer
parte. O ópio permanecia nele em um estado latente. Menos enérgico, menos
fulminante, mais durável. Já vi Hafner se privar do ópio doze
horas inteiras, — doze horas! Assim, eu não teria podido, mesmo naquele
tempo. Se eu me recordo, isso foi num baile. Nós não podíamos fumar depois do
jantar. Ele dança até a aurora, infatigável, resplandecente. Depois ele voltou
a jogar. Eu lhe deixei para retornar ao cachimbo. Quando o revi, já era dia
claro. Ele jogava ainda. O ópio o havia aconselhado nos lances, ele ganhava uma
grande soma, e continuava a conversar e a sorrir como se não houvesse passado
apenas um minuto. Mas então, — e isso gravou-se
profundamente em minha memória e o ópio indiano não a esfacelará; — então, eu
vi uma coisa inquietante, mesmo para mim, fumeur. Hafner, de um golpe
deixa tombar suas cartas e não fala mais. Uma angústia trágica se expande sobre
seu semblante, e eu vi, eu vi com certeza que sua alma vacilava em seus olhos,
prestes a fugir. Acreditou-se que ele passava muito mal. Mas, a mim logo
compreendi: o azeite faltava à lâmpada e a chama baixava. Ele não tinha mais
tempo. Eu o tomei pelo braço e o conduzi a fumar rapidamente. Toda a luz estava
se apagando de antemão em seus olhos mornos. — Eu pensei depois que seu corpo
era como um acumulador ao consumo constante, um acumulador de ópio: e nessa
espécie de maquina, a energia se amontoa, tanto que dessa energia ainda
restando uma parcela, a maquina continua plena e com atividade uniforme, mas, o
último átomo devorado, tudo se detém brutalmente. Hafner ficou estacado naquela
manhã.
Sim, era bem isso, um acumulador de ópio. Isso que a boa droga
distribui de divino a seus fieis, para alguns se dissipa em poucos instantes, e
são então puramente deuses. Hafner a controlava por inúmeras horas, que eram
somente horas de uma sublime humanidade, — mas de uma sublimidade constante e
conservada ao longo de sua vida cotidiana.
Agindo como os outros sonhadores sob o impulso estimulante do
ópio, ele era um enérgico ao mesmo tempo que um
pensador. Essa acumulação só caberia ordinariamente às almas do Extremo Oriente, mais antigas e menos civilizadas que nossas almas
arianas. Mas a alma de Rodolphe Hafner, — sua primeira alma, essa que ele
nutria com o ópio, — não era uma alma ariana. Os ocultistas admitem que a
humanidade se limita por um ciclo de evoluções sucessivas.
A cada evolução, os novos homens substituem seus predecessores e a civilização
dá um novo passo. Nós estamos chegando pelos seus cálculos, à quarta época; mas
às vezes a natureza se engana, e mistura para nosso desespero, um indivíduo da
evolução seguinte; e isso faz os gênios, os magos, os profetas, esses que
parecem não serem de tempo nenhum e de nenhuma raça. A alma de Rodolphe Rafner se avizinhava das almas mais fortes.
Ele era um enérgico. Seu ser prodigiosamente afinado e delicado,
capaz de todas as nuances e de todas as penumbras, se revelava frequentemente
audacioso e desembaraçado contra as dificuldades materiais da vida. Amante
quase profissional, sempre possuindo simultaneamente inúmeras mulheres, Hafner
manobrava em meio às intrigas com a desenvoltura ousada de um mosqueteiro de
Dumas. Hoje, essas aventuras não me interessam mais. Em minha concepção
ampliada pelo ópio sereno, a mulher não é mais que uma vestimenta de alma um
pouco diferente da vestimenta homem, e a diferença dos sexos, somente um
pretexto aos contatos pouco mais ou menos agradáveis, mas de maneira alguma
dignas de sua reputação exagerada. Antigamente, eu fazia juízos diferentes,
como todos os seres mais jovens. E às vezes, durante demasiadas horas, eu traí
o ópio pela possessão de mulheres, ou mesmo pela possibilidade dessa possessão.
Hafner fazia o mesmo. E eu me recordo surpreso do sangue frio e da resolução
com que ele se entregava então. Um fato que me resta, entre centenas que
escorregaram pelas fissuras do meu cérebro: esse aconteceu, eu não sei em qual
lugar da França. Hafner cumpria visita a uma mundana qualquer. A sala deserta,
as frases se extraviando, os gestos após as palavras, e o sofá propício, — a
dama rapidamente se abandonou. E no meio do abraço, a empregada hostil e devota
ao esposo vigiava. Tola situação, solucionável num piscar de olhos. A noite veio, uma noite de inverno, chuvosa. A rua provincial estava
deserta. Hafner apanhou a donzela, a amarrou e a
amordaçou, a levou ao seu carro e a trancou dentro dele, — verificando se
solidamente inviolável. — Ele a guardou três meses
prisioneira no porão de uma adega. Ela morreu. Ele a enterrou. Alguns chamariam
isso de um crime. Pareceu-me então que isso era apenas um mal em lugar de
outro. Hoje tudo isso está longe e quem se inquieta? Eu acho, aliás, assaz
cômico a mania dos homens dos julgamentos e das condenações.
Meu deus, esta história seria banal, se o envolvido fosse um
atleta ou um soldado. Mas mais que um poderoso, Hafner era um cerebral. E isso
é que é o mais extraordinário…
Um cerebral.
Nenhuma arte lhe era estranha. Eu vi suas telas; ele pintava
enormes coisas cheias de erros e contrassensos, mas transbordantes de sabedoria
e de gênio. Musico na mesma proporção que pintor, seu pincel se divertia com
essa impossibilidade absurda de traduzir Schumann em Rembrandt. E o mais
impressionante é que ele conseguia. Uma coisa de se destroçar os nervos: a
Sonata ao Luar; Hafner a havia jogado viva sobre um pano. E eu juro que ele não
tinha necessidade de escrever o título sob a obra. Não que fosse bela, mas era
pior, era exata. Somente a cor muito pálida o fatiga, e numa noite de tédio,
ele recorta a tela em pequenos morcegos irregulares, para fazer um jogo de
paciência.
Ele esculpia também. Eu tenho em minha fumaria uma terra cozida, A Mulher do Ópio, que ele a modelou com
seus dedos, e que me serve de amante no presente em que já me entedio em
cortejar as mulheres de carne. Eu creio que um pedaço de sua alma, de sua
primeira alma, ainda resta nessa Mulher do Ópio. Eu disse músico. Poeta também.
Poeta raro. Impar, conciso de fôlego, mas puro como uma nascente, e prodigioso
em versos divinos…
Eu sei de afrescos pompeianos menos
luminosos que seus poemas.
* * *
Eis isso que ela era, a primeira alma de Rodolphe Hafner. Nem por
uma hora, durante nossos três anos de amizade, — três, quatro? — Nem por uma
hora sequer seu gênio o deixou, nem por uma hora sua alma, repleta de ópio, o
decaiu ao nível banal da humanidade. Ao contrário, dia após dia, eu a via
crescer em sabedoria e em sutileza.
Por exemplo…
(Talvez fosse melhor que não se escrevesse essa continuação.
Talvez não seja prudente falar a torto e a direito sobre a droga. Eu sei de
pessoas que julgariam muito mal. Mas, o que é seguro é que a droga jamais será
um dano. Quando ela vem a alguém, ela sabe o porquê. E
depois, não é isso? Se eu e você não tivéssemos nada a ver com isso, então sim,
melhor seria não escrever. Mas mesmo assim alguns não compreenderão…).
Eu creio bem que desde aqueles tempos a segunda alma de Hafner já
começava a nascer nele, ou a se revelar. Sim, as coisas devem ter se passado
desta maneira. A segunda alma cessa de dormir. E, provavelmente como direi
logo, essa segunda alma era mais sua que a primeira, a alma errante alojada por
uns tempos num corpo vago. Mais sua. Portanto a alma legítima e a outra, a
usurpadora. Ciúme. Ódio, Luta. Sim, luta,
as duas almas acabaram por se baterem naquele ringue sem perdão. Eu não o vi,
eu suponho. Mas bem seguro, que foi essa batalha que fatigou o corpo de Hafner…
O ringe, após o combate, eu me recordo, estava todo pisoteado e escavado, com
gotas vermelhas secando na areia… E o corpo de Hafner, também, algum tempo após
a nossa separação, começa a se escavar e a murchar, muito mais rápido do que
seria natural pela sua idade. Menos força, menos agilidade. A tez muito pálida,
pipocada de vermelho, — como a areia do ringue. Os olhos fixos e febris. A boca
branca e seca. Além disso, as costas e o peito salientes sob a pele. E tossia
com uma tosse breve que soava o oco dos pulmões. E depois foi se adelgando como
uma prancha aplainada. Ele veio a pesar um peso cômico, um peso de criança. Uma
tarde num parque ele sobe numa balança: as pessoas se juntam. Essa noite então,
eu o ouvi falar na fumaria pela primeira vez. Mergulhando a agulha no ópio, ele
murmura: — droga suja! — E quando ele foi fumar o primeiro cachimbo, repetiu
mais forte: — droga suja! — Achei que ele gracejava, naturalmente. Ele estava
doente, vá lá. Mas por que falar do ópio? O ópio não é isso, jamais teria feito
mal a alguém. Tem a mim, e eu me porto muito bem. Mesmo, e eu os asseguro que
se me tivesse mantido no ópio chinês, ele não me teria deixado essas fissuras
em meu cérebro… Não, Hafner estava doente porque suas duas almas se batiam
embaixo de sua pele, se batiam com todas as suas forças, pisoteavam e
devastavam sua carne, se bateriam até cansarem ou matarem uma ou outra…
Enfim, uma manhã, quando eu acabava o último cachimbo, ele se
levanta e me diz: — Adeus.
Como eu o olhasse sem compreender.
— Eu me vou, — diz ele.
— Para onde?
— A outra parte.
E nunca mais o revi.
* * *
Nunca mais, até ontem. Ontem. Rua Blanche,
— eu tenho uma fumaria nessa rua, — e eis que me choco com um senhor que
caminhava com o nariz num jornal. Esse era Rodolphe Hafner.
Ele não me reconhece de imediato. Senhora, eu estou velho, eu o
sei bem. Meus joelhos, agora, estão bem escavados, e até já me fez uma bengala
para caminhar. Ele ao contrário, ele me pareceu jovem ainda, e mudado portanto. Eu peguei seu braço. Ele ficou muito contente.
— Ah, meu velho, — disse ele. — Que bom te reencontrar!
E ele dobra o seu jornal. Eu vejo que ele lia o Petit Parisien, — o folhetim.
— Mas eu tenho tantas coisas a te dizer, sabe, depois de trinta
anos! Eu estou casado, meu velho. Tenho dois grandes meninos! — E ele me relata
seu casamento, seu apartamento, os dotes de sua mulher e a sopa de suas
crianças. Para ele tudo isso parecia fora do comum, prodigioso. E tinha ainda
uma carreira magnífica. — Você compreende agora, que eu fiquei sério! — Ele já
andou vinte e cinco milhas por sua embaixada e seria um dia ministro
plenipotenciário. Eu, eu o escutava pasmado.
Mas chegando em frente a fumaria eu lhe
disse:
— Sobe comigo?
— Aqui? — Ele me disse, olhando a casa.
— Aqui, sim, e nós fumaremos uns cachimbos.
Ele deu um salto de cabra. Pensei que ele tornara-se um louco.
— Fumador de ópio! — Grita-me ele — Fumador de ópio! Você vem para
me matar!
Então ele começa um discurso incoerente.
Isso era para mim que estava louco, louco
de fumar. Ele não fumaria nunca mais, nunca mais. Ele estava curado. Não sem
pena, arre! Ele que teve de sofrer o martírio para extirpar do seu corpo essa paixão funesta. Sem contar que, meses e
meses ele esteve parado vegetando, esmagado, flutuando entre a vida e a morte.
Mas pouco a pouco, conseguiu retornar a consciência. — Há trinta anos, não é
isso?, — e teve que recordar agora. E que ele
engordou. — Oitenta quilos, meu velho!
Quanto a mim, eu já estava com a aparência de um enforcado e que
se eu não desejasse estalar incontinente, ele não poderia senão me aconselhar a
jogar meus cachimbos na água. — Isso que ele havia feito.
Eu escutei e pensei: a segunda alma. Essa é a segunda alma, a que
ganhou a batalha. Da primeira nada restou.
E eu o questionei — seu gênio de outrora, sua pintura, sua música?
— Ah meu velho, eu não tinha nada que fazer com isso. Eu enviei a
um salão uma vez antes do meu casamento, eles a recusaram, e veja você, eles
tinham razão. Ofício de boêmio, a arte. Eu teria somente ganhado a manteiga do
meu pão. A música, sim. Isso ainda me faz passar o tempo. A música alegre, por
exemplo. Na velhice se percebe melhor as coisas. Schumann, Chopin, são um blefe
macabro. E isso não é nada bom para os nervos. Mas, por exemplo, eu escrevo. Um
pouco de jornalismo não prejudica a pessoa. Eu faço a política desse pasquim
aqui. E foi isso que me valeu o prêmio vermelho!
A segunda alma! A segunda alma! Meu deus, que tristeza! A outra, a
alma ardente e luminosa, onde jamais a encontrarei?
E começo a odiar esse Rodolphe Hafner, diferente e vil, espírito
de metal, de burguesia e de barriga, inimigo da poesia e do ideal, inimigo do
ópio divino.
Mas ele não lia mais os meus olhos. Ele não compreendia o meu
desespero.
— Enfim — disse ele. — Envenene-se se teu coração te diz. Isso não
me diz respeito. Mas quando te for bastante, pense em mim, meu velho. Olhe-me
bem; eu estou forte, robusto, sólido. Eis esse que você pode ainda tornar-se.
Um cachimbo a menos, é um dia a mais de vida. E com a breca, como é bom viver.
Até a vista. — Ele me sacudiu a mão e atravessou a rua. Sobre a calçada em
frente ele se volta e grita ainda:
— Ah sim! Arre, como é bom viver!
E ele se vai.
Ora, nesse mesmo instante, uma laje se desprende de um telhado, e
vem chocar-se contra sua cabeça. Ele cai morto.
Bem morto. Eu atravessei a rua para o ver. A ardósia seccionou-lhe o crânio como um golpe de faca. E a
segunda alma, procurei ao seu redor, havia fugido. Revanche justa, em suma. Não
lhe parece?