FAI-TSI-LOUNG
À Pierre Louys.
Ao centro da baia esverdeada repousa o barco chinês
e Hong-Kop descansa recostado em suas esteiras, leito
do filosofo.
Para ele ainda não é hora de fumar.
Em torno, o Fai-Tsi-Loung erige
como menires suas inumeráveis ilhas, todas semelhantes e surgidas nas
águas calmas como um exército petrificado. E a bruma do Tonquim,
pesada do sol difuso e da chuva quente, deposita seus mistérios sobre o Fai-Tsi-Loung; um mistério asiático,
inquietante e perigoso.
Porém é o inextrincável Fai-Tsi-Loung, com suas brumas, que fazem Hong-Kop livre da soberania indesejável de Hoang-Ti, o Imperador que veio do norte; livre para
continuar sua vida arrogante de ave de rapina, perpetuamente abatendo-se sobre
as tímidas embarcações dos comerciantes e dos pescadores.
Hong-Kop é um pirata. — Sem
dúvida, o porquê do filósofo recomendar
a seus discípulos para fugirem do aviltante trabalho e de não
ser: nem laborioso, nem tecelão, nem fundidor de bronze, é que o
espírito e a sabedoria se embotam no contato repetido
com os mesmos objetos e as mesmas tarefas. Pode ser, entretanto, que Hong-Kop seja um pirata por causa de outras razões
incomuns. Será que é possível penetrar na alma serena e
desdenhosa de um intocável chefe de homens? Ele despreza todas as
coisas, tanto a vida como a morte.
Ele confunde na sua indiferença irônica seus
próprios guerreiros, infantilmente orgulhosos de seus hábitos
irreverentes, como os comerciantes que ele rouba e massacra, ou que perdoa ao
gosto de sua fantasia. Fantasia obscura e respeitada, pois os piratas acreditam
que Hong-Kop é de raça quase divina, e
o admiram por sua beleza séria e sua coragem absoluta. Além
disso, o ópio já penetrou seu corpo e sua cabeça,
aperfeiçoando a todo seu ser e o elevando muito acima dos homens.
No leito, o filósofo continua recostado em suas
esteiras, na retaguarda do barco. A cortina de palha de arroz se estende
à brisa, mas não há brisa. O céu pálido
deita sobre a baia a sua brancura tórrida. Hong-Kop,
com um sinal, chama as mulheres, que dia e noite se prostram defronte o amo,
esperando sua vontade ou o seu desejo. Uma estende o pára-sol
de seda amarela por sobre sua cabeça pensativa. Duas, delicadamente,
abanam a face indecifrável. A quarta, receosa, assenta a sua longa
cabeleira lisa, em cujo pescoço esguio parece inclinar-se. E as
três últimas, com o fumador preto entre as mãos, lhe contemplam
os olhos imóveis. Pois freqüentemente,
quando Hong-Kop, cujo coração ainda que
feito de pedra fria, deseja entretanto, ser uma alma
suspensa, ele fuma.
Mas ainda não. Hong-Kop
está em pé, delgado em seu roupão negro com botões
de coral. Por um segundo, ele aspira o ar pesado do meio dia. Contempla
então os rochedos nus e ásperos que velam ao redor do barco tal
qual uma corte de gigantes. Depois, satisfeito, ele se deita. A lâmpada a
seus pés, terna com seu vidro manchado de ópio. E o cachimbo de jade,
herança de reis ancestrais, esconde em seu fornilho lustroso a
pílula cozendo por sobre a chama. Hong-kop
então, aspira profundamente a baforada divina e
enquanto deita as volutas por suas narinas, seus olhos se infundem de pensamentos extra humanos, enquanto a fumaça negra se
dissipa numa névoa por sobre as águas.
+ + +
… De pensamentos extra-humanos.
A raça de Hong-Kop tem
mais gerações de reis que flores vermelhas num ramo de hibiscos
no outono. Séculos de nobre ócio aliciaram o sangue de suas
artérias e enalteceram os pensamentos de seu cérebro.
E quando o ópio se assenhoreou de Hong-Kop, o futuro, o passado e o presente não são
mais que um a seus olhos desenganados. A alma dos príncipes de outrora,
evadidos das tumbas mal guardadas pelos tigres de granito, vieram mesclar a sua
alma com a alma dos príncipes contemporâneos: — esses que
combateram um dia o invasor branco vindo do ocidente. E suspenso pela
fumaça negra que o faz transportar-se de eras em eras, mais ligeiro que
com uma asa de fantasma; Hong-Kop, estendido em suas
esteiras na retaguarda do barco, mescla alternadamente, nos esplendores de
outrora e nas tristezas de mais tarde, sua indiferença orgulhosa e
lúcida.
Sobre a proa do barco, a uma respeitável
distância do seu chefe, os piratas mascam o bétel
e jogam o bakouan com as sapecas que ainda retém o
brilho da prata nova.
+ + +
O fornilho de jade se inclina sobre a lâmpada. O
ópio borbulha. Com uma só aspiração lenta, Hong-Kop atira em seus pulmões toda a fumaça.
Agora, a última parcela negra esta
consumida, e o jade retorna vazio. Este foi o terceiro cachimbo.
Hong-Kop vê três
mil anos atrás.
Ele não está mais no barco. Ele não
está mais no arquipélago. O Fai-Tsi-Loung
não é mais que um mar arenoso, indefinido. Além do
horizonte, o Tonquim mostra seus pântanos incultivados
aonde nascerão os arrozais.
O Rei Dragão, Hai-Loung-Wang,
a serpente do mar, longa como trinta pítons, flutua descuidada. Ele
dorme aguardando a sua hora, a hora de tornar a subir sobre as águas
frias da China onde sua aparição prevista anuncia aos povos, uma
vez por século, o advento de uma nova dinastia de Imperadores. Por
instantes, sua cabeça redonda se ergue e as escamas de suas costas se
eriçam num murmúrio.
Ora, o Imperador solar, Hoang-Ti,
passeava no alto do seu curso, com seus olhos de ouro por sobre toda a terra, e
o sono do Loung irritou sua alma efervescente. De um
só golpe de seu arco, ele bateu direto em meio às escamas para
revelar o vassalo adormecido.
E o Loung, coberto de vergonha,
se enterrou sob o mar, até as entranhas mais profundas, tais que as
rochas ígneas que jaziam abaixo das areias se dispersaram para que ele
passasse. Mas neste mesmo momento, soou a hora. Lá em cima, nos confins
do Hou-Pé, o Imperador será degolado na
caçada e uma dinastia vai morrer. Impetuoso, Hai-Loung-Wang
se arremessa e pula sobre as águas, — se vê que as rochas se
arrastam e saltam com ele, para recaírem numa chuva de pedras. Um
arquipélago inominável se estende agora sobre o mar tonquinês. O Fai-Tsi-Loung
nasceu.
+ + +
Ainda o ópio, ainda a lágrima negra que se
evapora sobre o jade acima da lâmpada. A benéfica droga se insinua
nas fibras do fumante. Este é o seu sétimo cachimbo.
Hong-Kop agora vê três
mil anos à frente.
O Fai-Tsi-Loung continua ali,
velho e com musgos verdes agarrados às suas rochas úmidas de
chuva.
Os barcos flutuam entre as ilhas. Mas são
estranhas embarcações, sujas de fuligem e de pó, tombadas
e quebradas. E este é o fim das nobres horas de pirataria e de
sábia indolência. Para além do horizonte, os arrozais
vão trocar de donos. Em torno às cidades brancas de cal e verdes
de porcelana esmaltada, os invasores do ocidente avançam suas linhas de
ocupação. E um grande rufar, num novo tom, anuncia a queda das
cidadelas. — Mortos, os príncipes vestidos de seda bordada, que
reinaram em seus palácios incrustados de nácar e repletos de
sombras frescas. — Mortas, as horas literárias dos
filósofos conselheiros dos tronos. Morto também, quem sabe? O
Hai-Loung-Wang, — enterrado numa tumba
cinza…
+ + +
Ainda três longas baforadas mais, que desta vez
chegarão até os nervos do fumante e os fundirão
prodigiosamente delicados e sensitivos. Este é o nono cachimbo.
Hong-Kop se ergue da esteira e
volta seus olhos ao leste. O ópio o adverte de um perigo que vem
flutuando sobre as águas.
+ + +
Um barco.
Ele passa entre as rochas. Suas velas estão cheias
de brisa. Portanto o mar está calmo e o reflexo das ilhas não
treme sobre a água prateada.
Ele aproxima. O casco verde brilha como um casco de jade.
Uma tenda de seda abriga a popa. Grandes estandartes brilhantes embandeiram os
mastros que parecem de marfim. Os piratas interrompem seu bakouan
e exclamam. Certamente é um barco rico, um barco de mercadores
opulentos, ou de grandes funcionários letrados. Pode ser o
próprio barco do vice-rei que governa em nome de Hoang-Ti,
o usurpador.
Hong-Kop silenciosamente
aguarda. Ele sabe que um barco de jade pode não ser só isso. Ele
o fareja perigoso, pesado de morte. Mas o filósofo ensina que nada
escapa a seu destino, nem o trabalhador ignóbil patinando na lama do seu
arrozal, nem um chefe de sangue Imperial instruído pelo próprio Kouong-Fou-Tseu em todos os ritos. E Hong-Kop espera chegar o barco sem desejo e sem euforia.
Então, uma das mulheres se ajoelha para lhe oferecer seu grande arco em
chifre de boi, ele sorri com cortesia e apanha o arco.
O barco de jade está bem próximo. Sobre a
tenda, uma princesa vestida em pedrarias é assistida hieráticamente.
A seus pés, muitas mulheres cantam versos e se acompanham de
instrumentos de corda. Isso é de uma harmonia que Hong-Kop, sábio músico e sábio poeta, avalia instantaneamente perfeita. Perfeita também
é a beleza das mulheres, semelhantes à das rainhas; perfeita a
magnificência das vestes, o esplendor das esteiras e das almofadas.
Hong-Kop admira.
Os piratas assombrados se interrogam. Alguns são
por agarrar as armas e abordar. Outros se curvam sobre os remos e permanecem em
suspenso com o dorso arqueado. A maioria, entretanto, irresoluta, aguarda o
chefe, imóvel e ainda sorridente.
O barco de jade se aproxima diretamente. Então,
esse é o destino. Desdenhoso, Hong-Kop se
ergue e brande seu arco. A flecha lança-se hábil e crava a
mão da princesa contra o marfim do seu trono. Um fraco grito se mistura
ao clamor dos piratas erguidos furiosamente atrás de seu chefe vencedor.
Mas subitamente, o mar salta como que sob o chicote de um
gigante. Uma muralha de água espessa levanta-se entre os dois barcos,
detendo o combate. Um minuto, depois o mar retomba. E
nele não está mais o barco de jade. Nada além do Fai-Tsi-Loung e suas rochas afogadas de brumas. Sobre a
água prateada, duas grandes rugas concêntricas fogem pelo
horizonte circular.
+ + +
O Fai-Tsi-Loung é muito
grande. Aqui estão muitos dos lugares que Hong-Kop
já percorreu com seu barco de saque, sem, no entanto, encontrar nem as
últimas rochas nem as últimas grutas. E hoje, novas fendas,
jamais vistas, parecem se abrirem frente à sua rota para se fecharem
logo atrás.
Foi ontem que Hong-Kop atirou a
sua flecha contra o barco de jade. A brisa não é mais leve, e o
ar permanece pesado e sufocante. Cansado de esperar, imóvel, ao centro
da baia ardente, Hong-Kop desatou um bote e foi-se
sozinho perder-se no labirinto de ilhas. Para ele nada importa a não ser
o cachimbo, a lâmpada e a provisão de ópio para a jornada.
Hong-kop, aprumado, um pé sobre a roda de
proa, mergulha seu remo alternativamente à direita e à esquerda.
Os rochedos em que ele roça, o miram afundar-se cada vez mais na bruma
quente.
Ao redor não há mais que paredes escarpadas e nuas, fendas
aqui e ali com entalhes agudos por onde desliza o delgado bote. Hong-kop, pirata-rei do Fai-Tsi-Loung, conheçe
muito bem o seu próprio reino, tanto que os cumes salientes dos
promontórios, evitam respeitosamente de arranha-lo
à sua passagem. Hoje entretanto, os picos
parecem se alongar dissimuladamente sobre o casco frágil, e os cumes que
pendem abaixo do nevoeiro jogam algumas vezes em seu rastro alguns pesados
pedaços de xisto. Hong-Kop, obscuramente,
sente ao seu redor e em todo o Fai-Tsi-Loung, em
águas e pedras, hostilidade e traição.
Ele segue assim mesmo. A cada golpe de remo, seu tronco
delgado se dobra em frente, depois recua atrás,
os rins curvam-se como para o amor. A pele mate se carrega ligeiramente de
carmim.
Sobre a seda do quimono, o corpo amarelo delicadamente
transparece. Hong-Kop é muito belo. Sua
linhagem antiga está escrita em cada um dos seus membros inegavelmente.
+ + +
Os rochedos tornam-se mais selvagens, as águas
mais esverdeadas e mais opacas. Hong-Kop parou de
remar. Deitou a cabeça sobre o flanco esquerdo, na almofada de couro
inflado, ascende a lâmpada e prende o
ópio na ponta da sua agulha. Entretanto, o bote deriva docemente entre
as rochas. — Docemente? Não, — veloz.
Como se alguém o conduzisse com uma mão
forte e invisível. E assim que a primeira dose aclara a
inteligência do fumante, Hong-kop se examina.
Mais outra coisa o preocupa: ele quase
não têm mais ópio no pote de porcelana; somente
três doses. As mulheres se esqueceram de renovar as provisões. E
Hong-Kop irritado, determina-se a matar uma ao seu
retorno… A mais feia?
Ao fim do canal, barrando a passagem, uma muralha
gigantesca se ergue agora.
Hong-Kop se interrompe para
olhar. Negro, abrupto, sinistro. O cume perde-se absolutamente no nevoeiro.
Nenhuma brecha, nenhuma fenda.
Por certo, essa muralha é nefasta. Hong-Kop sabe porque ele acabou de
aspirar o segundo cachimbo. Mas o bote, rápido, fende a água como
uma barbatana. O remo manejado por um braço implacável não
se desvia do seu curso fixo. Na verdade, é o mar que se abaixa defronte
dele e ele desliza como um pente. Tudo isso vê Hong-Kop.
Mas ele permanece impassível, é que o ópio derrama a inteligência
em sua alma.
Ao redor, os rochedos riem maldosamente. O reino do
pirata foi abolido, sua soberania esta em rebelião. Perante a
traição do Fai-Tsi-Loung, por tanto
tempo fiel, um menos sábio se indignaria, maldiria ou lutaria. Mas seria
uma luta vã e irrisória. Hong-Kop
resigna-se friamente às perdas que ele advinha, se eleva acima delas e
as despreza. E sem se comover, ele limpa minuciosamente o pote, retirando as
sobras com a ponta da agulha e prepara o terceiro cachimbo, o último.
O bote vai se chocar contra a muralha de rocha. Mas rente
à água, um túnel se abre. É uma abobada baixa que
se rompe sob a montanha; e o bote se precipita. À direita e à
esquerda, entre as colunas irregulares das estalactites, outros túneis
se descobrem, perpendiculares. Toda a montanha
não deve ser mais que um labirinto fantástico de cavernas
subterrâneas e submarinas.
E as trevas se povoam de coisas indizíveis.
Imediatamente se faz noite. A lâmpada, com sua chama que dança,
aumenta a percepção das trevas. A abobada, as paredes que se
alargam e se estreitam a cada curva, abrigam dentro de cada buraco, em cada
fenda, estranhos sentimentos petrificados. Pois o túnel se abaixa e se
estrangula. Agora, a abobada roça seus musgos úmidos no rosto de
um Hong-Kop estendido.
Mas uma claridade pálida vem amarelecer a
lâmpada e o bote, impulsionado como por uma funda, desemboca para fora do
subterrâneo, — ao ar livre. Aqui, a montanha fecha-se em todas as
partes como um circo gigantesco, uma cratera extinta que o mar encobriu. E isso
fez um laço cercado por penhascos. Fora das profundezas da água,
os precipícios mostram-se verticais e inacessíveis, negros e nus.
Somente nos lugares mais altos é que eles se inclinam, escalando os
cumes com rijas escarpas onde se agarram algumas moitas negras. O circo
é um poço de onde jamais alguém poderá escapar, a
não ser pela estreita passagem subterrânea. Toda escalada
será loucura: A trezentos pés acima da água, grandes
macacos curiosos se arriscam com precaução na parede a prumo e de
baixo, eles parecem menores que os ratos.
O bote se detém. Hong-Kop,
indiferente, aproxima da chama sua agulha onde tremula a gota de ópio.
Depois que a gota coze e doura, a fixa com a
pressão exata sobre o fornilho de jade e espera, o cachimbo em suas
mãos como um cetro: — Pois que o mar se entreabriu.
+ + +
O Rei-Dragão, Hai-Loung-Wang,
longo como trinta pítons, eriça para fora do mar sua
cabeça terrível.
Muita vezes, Hong-Kop, a viu em seus sonhos de ópio. Ela é
assim: — inexprimível.
Ao redor, a água treme loucamente. E todas as
pedras, contraídas de horror, ressudam um suor frio.
Nesse silêncio prodigioso, Hong-Kop,
imediatamente, percebe a febre arquejante do Fai-Tsi-Loung
apavorado perante seu criador.
Face a face, o Fumante e o Deus.
Seus olhos enormes e sangrentos mergulham nos olhos
negros que o ópio metalizou até a impassibilidade absoluta. O
fumante não se ergue de sua esteira. E é o Deus que se determina
a pronunciar a sentença.
— Tu feristes, com tua
flecha minha filha secreta Yu-Tcheng-Hoa. Em
pagamento, tu agonizarás aqui de morte lenta, privado de arroz, privado
de água e privado de ópio.
Hong-Kop fixa desdenhosamente o
Loung.
— Já faz muito tempo — diz ele
—, que Kouong-Tseu me ensinou que sou mortal.
E com o cachimbo inclinado sobre a lâmpada, ele aspira
a terceira dose, — a suprema, — sem mais
falar e nem dignar-se a olhar, defronte a saída subterrânea, as
rochas que desmoronam do penhasco, fechando impenetravelmente toda e qualquer
retirada.
+ + +
O sol se põe atrás da montanha. A bruma ensangüentada do ocidente é terna. Depois, a
noite a tudo envolve. E o circo de morte torna-se extremamente negro.
O bote de Hong-Kop flutua
inerte. Hong-Kop não dorme.
Ainda estendido em sua esteira e com a cabeça na
almofada ele põe ao lado o cachimbo vazio. Por enquanto ele não
irá sofrer. Com o pouco de ópio que ele tomou, a boa droga
apaziguará seus nervos e seu sangue. Ele poderá contemplar
friamente a morte e o desprezo.
Mas quando chegou a hora do cachimbo noturno uma
inquietação incomum se insinua pela primeira vez em seu peito.
Ele não mais fuma. O ópio falta a seu ser.
É um mal-estar indistinto, uma dor surda. Uma sede que sufoca. A saliva
de sua boca está seca. Uma fadiga repentina cobre seus membros. E o sono
se recusa a vir.
Entretanto o tempo corre.
O mal de Hong-Kop aumenta.
Agora, a pele febril se crispa. Uma lassitude insuportável pesa sobre
todo o corpo e a cabeça lúcida começa a se turvar. Grandes
batimentos irregulares abalam suas artérias. Perto do cérebro o
sangue se rarefaz. Toda a seiva interna se esgota. Muitas funções
essenciais se desarranjam e param. É o inicio da morte.
A cabeça lúcida se perturba. Logo, é
a sábia filosofia que se evapora. Depois a indiferença
asiática e a nobre corágem destemida.
Em poucas horas, Hong-Kop, não é mais
muito diferente que um simples trabalhador pisoteando a lama do seu arrozal.
Depois enfim a razão vacila no cérebro
vazio de ópio.
Já faz seis horas que Hong-Kop
não fuma. E os perigosos gênios da noite, ousam progressivamente,
descerem então da montanha e convergirem para escarnecer o fumante
desarmado.
Num passo crepitante eles se aproximam. Mas eles
não irão encontrar nada, nada além dos macacos sobre os
declives desertos. Nada mais que pássaros no ar viscoso do nevoeiro.
Nada mais que os peixes na água morta. Nada de vivo para que esses
gênios horríveis possam assustar. Nada além de um homem que
jaz em sua tumba flutuante.
E eis que chegam. Seus risos
fúnebres fendem em suas bocas, pavorosos dentes vermelhos. Suas garras
hábeis em escavarem cemitérios arranham a noite. Seus olhos
brancos, olhos sem cabeça, contemplam apavorantes o supliciado. Em torno
do bote, uma ronda macabra se estende em círculos, com um rangido de
asas escamosas.
Em seu corpo, Hong-Kop sente o
ardor de inexprimíveis contatos. Depois, a horda hedionda se aperta, tudo para anulá-lo.
Dois sopros quente de podridão
se misturam junto à sua boca humana. As membranas viscosas
açoitam o seu rosto e o envolvem com suas dobras. Uma amálgama
obscena e terrificante sapateia seu corpo, mais brutal de segundo em segundo.
Os gritos das corujas, de uma borda à outra do golfo se respondem, como
a chamarem outros gênios ainda piores para descerem ao cerco…
Mas, ao oriente, uma brancura súbita escorrega do
alto da montanha. E como num vôo de corvos
expulsos, eis que os fantasmas malignos se dissipam, aniquilados…
+ + +
A aurora? Não, a aurora ainda esta longe sobre o
mar.
Liberto do abominável assalto, Hong-Kop se agita banhado em suor.
Sobre a esteira manchada pelos contatos impuros, o corpo
machucado luta dentro da roupa em farrapos e o semblante contraído
retorna lentamente à sua beatitude serena.
Logo, a brancura oriental desce até o lago, e nele
se faz uma grande calma, doce e viva. A bruma se irisa mais diáfana e os
raios da lua começam a pratear as ondas. Pois é ainda noite
plena.
Então, que é essa claridade branca? Ela
está ali, banhando o dono do bote, mais brilhante que a caricia lunar.
Hong-kop, confuso, a sente velar sobre sua febre
muito quente e umedecer de um hálito odorante a sua boca aberta e as
suas veias exauridas. É como um raio isolado da primeira aurora; um
sopro de primavera que torna-se luminoso; algo de
muito jovem, de muito cândido e de muito terno, debruçado
misericordiosamente sobre a agonia do condenado. Hong-Kop,
com seus olhos pesados, contempla a noite procurando inutilmente a realidade do
doce fantasma: seus nervos privados da droga clarividente, não sabem
mais compreender o mundo extra-humano.
E depois o sono, o tão sonhado sono, eis que chega, — miraculosamente, pois um fumante
privado jamais consegue dormir. E as pálpebras se abaixam sobre seus
pobres olhos e o cérebro torturado se detém e se apazigua. Os
sonhos chegam, em asas de ouro, muito diferentes dos espectros carrancudos de a pouco. Sobre o bote, tudo, tudo o que rodeia Hong-Kop adormece e a claridade libertadora se pousa como uma
borboleta. Então, pontuando o silêncio propício, uma seqüência de sons surdos, regulares e precisos:
gotas que tombam uma após outra no pote de ópio vazio.
+ + +
A aurora. Depois o sol que se levanta a
passos lentos no céu vazio. Sobre o lago amurado, não
há nada além do bote. E progressivamente, liberta do misterioso
encantamento noturno, a natureza se refaz hostil e feroz em torno do
prisioneiro adormecido.
Os ardentes raios esbranquiçados batem rudemente
no rosto de Hong-Kop. Hong-Kop
desperta. E imediatamente ele vê o prodígio:
— O pote de ópio está cheio.
Mas como isso foi feito? — Isso é bem do
ópio. — Um ópio denso e liso, não muito negro, mas
tinto de reflexos vermelhos.
Diria-se de traços de
sangue. Porém, na agulha, as gotas se juntam brilhantes ao se aquecerem
e se inflam como o ouro em fusão assim que se aproximam da chama.
— Isso é bem do ópio.
Este é um ópio maravilhoso! A fumaça
aveludada é absorvida radiosamente pelo peito ávido e expandindo
em sua passagem múltiplas volúpias. Num fechar de olhos, tudo se
esgota, toda a angústia, desfaz-se, se esvai. Uma vida nova
começa. O sangue congelado retorna fluído. A medula ressecada se
umedece e vibra.
Ao coração regenerado, aflui largamente a força, o sangue frio, a impassível
soberania. Ao cérebro, a clarividência e a sábia filosofia.
Imediatamente o fumante retomou e ressarciu seu
domínio.
Agora não importa a rocha inimiga que o aprisiona.
Nem mais a morte lenta que se fará quando começar a padecer,
privado de água e privado de arroz. O ópio consolará e
saberá serená-lo e a encontrar magicamente uma porta
resplandecente por onde o homem liberto se unirá aos deuses. Hong-Kop fuma. O sol chega ao zênite, depois descende
até esconder-se no outro lado. Hong-Kop ainda
fuma.
E a noite, uma vez mais, sucede ao dia.
+ + +
Desta vez, não há mais espíritos
malignos sobre a montanha. O ópio expulsou toda presença impura.
Pois, agora Hong-Kop está armado contra os
fantasmas e não os teme mais, por mais sutis que sejam.
Ele sabe que nada hostil ousará vir. Mas ele sabe
ainda que outra coisa virá, — o
ópio lhe disse, — outra coisa, a claridade protetora que ontem o
salvou. Ele aguarda respeitosamente, com os olhos fixos no oriente, de onde ela
descerá.
Ora, eis que chegou o momento.
A lua se eleva acima dos rochedos e deslizando sobre seus primeiros raios,
há um raio bem mais brilhante. A claridade desce sobre o lago. Hong-Kop a espera e seus olhos esclarecidos a reconhecem. Ela
tem a forma de uma mulher infinitamente delicada e bela! O seu rosto é
puro, mais branco que esse não há em nenhuma
criatura de Laos ou de Annam e ornada
deliciosamente de cabelos mais finos que a seda divina.
Eles são negros certamente, seus cabelos, como
são todos os cabelos do mundo; e, entretanto, seus reflexos sobre a lua
cintilam como os reflexos do ouro. O pescoço visível como uma
haste se eleva acima dos ombros radiosos, transparente sob o roupão de
pedrarias, mais brilhantes ainda que o próprio corpo que transluz.
E o braço direito, estendido em um gesto de paz,
sangra de uma ferida ainda aberta. É a princesa do barco de jade,
é a filha do Rei-Dragão, — Yu-Tcheng-Hoa,
a preciosa.
Ela vem a Hong-Kop, caminhando
ágil sobre a água vassala. E defronte os olhos claros que a fixam,
ela hesita timidamente, ela, a Flor de Jade soberana. É que o
fumador-pirata, cativo e desdenhoso, é estranhamente belo, mais belo que
um sonho de fada. E pode ser que seja essa simples emoção de
mulher, que retém os passos divinos de Yu-Tcheng-Hoa.
Assim mesmo, ela ousa, ela se aproxima. Acerca-se ao
bote. Ela pousa sobre a roda de proa seu miúdo sapato de peles. Ela
chega mais perto, mais perto, muito perto, — Hong-Kop
percebe o coração sagrado que bate a grandes golpes receosos.
Ela estende ainda, quase implorante, seu pobre
braço ferido, de onde o sangue corre em gotas pequenas. E Hong-Kop, agora reconhece o milagre: Esse sangue é de
ópio e foi assim que o pote vazio foi enchido.
A Flor de Jade misericordiosa quis que seu castigo fosse abreviado e o nutriu
da própria seiva de suas veias divinas.
Misericórdia muito estranha e o
ópio discreto se recusa em dizer o porquê ao fumante. Ele,
Hong-Kop que se destinou à advinhar,
não advinha mais. Toda uma região do mundo oculto lhe está
fechada, essa mesma onde se esconde o pensamento misterioso da Flor. E esse
mistério impenetrável mesmo ao ópio que abre a todas as
portas, não é o que mais intriga Hong-Kop.
Em verdade, esse ópio mágico, esse ópio que é de
sangue, não é mais a droga serena que distribui indiferente seu
dom a todos seus fiéis. É um ópio parcial, que guarda
semelhanças com o braço que o derrama.
E voluntáriamente, no
reencontro obscuro de dois pensamentos, ele se furta para não armar o
pensamento de Hong-Kop contra o pensamento de Yu-Tcheng-Hoa.
Animada pela imobilidade respeituosa
do cativo, animada sobretudo pela incompreenção
que ela advinha em seus olhos que nada refletem, a fada agora sorri. E esse
sorriso indizivel de tanta graça, perturba
imperceptivelmente a alma virgem do pirata-rei.
Eles demoram-se em face um do
outro, silenciosos. Ele reclinado contra as esteiras, ela em pé a seus
pés. Seus olhos se encontram e pouco a pouco se enternecem. A lua
cúmplice se atrasa pelo céu. Seus raios curiosos deitam-se sobre as pregas da seda que esconde o corpo
esbelto e nervoso do fumante, — deitam-se sobre as esmeraldas que
cintilam nas pernas leitosas da Flor de Jade.
Hong-Kop esta
embriagado pelo ópio mágico. Seus membros não pesam
mais. Sua cabeça se estende em uma radiosa fantasmagoria de imagens e de
idéias entremeadas, todas luminosas. E,
verdadeiramente ele está semelhante em imortalidade; entretanto, na
plenitude da sua voluptuosidade uma alegria ainda lhe parece
desejável… a alegria da virgem incomparável erguida a seus
pés.
Porém, ela é incomum e indecifrável.
E toda a audácia do ópio não é suficiente para
erguer Hong-Kop de sua esteira, para que ele apanhe a
mão divina, — que somente a ele se estende.
A lua se inclina sobre a montanha ocidental. Logo logo, a aurora
embranquecerá o oriente, e os encantamentos se desvanecerão
frente ao sol. Hong-Kop, mais clarividente à
medida que a fada lhe sorri, advinha que alguma coisa de irreparável
esta em vias de se consumir, que uma porta sublime está prestes a se
abrir — que ele não terá mais muito tempo para essa hora.
Mas a incerteza continua a paralisar sua decisão, — se bem que
mais e mais lhe visita o desejo de aproximar seus lábios amorosos sobre
o braço ferido de onde o ópio sangra ainda.
Mais que uma hora. A lua, com pesar, se faz desaparecer
atrás do penhasco. Hong-Kop enfim se levanta e
se ajoelha defronte Yu-Tcheng-Hoa. Sobre o rosto
luminoso, uma angústia incomensurável desfaz bruscamente o terno
sorriso, a angústia muito evidente da amorosa que espera ser amada. Mas
a lei malvada que interdita o reconhecimento desses lábios divinos, continua obscurecendo os olhos de Hong-Kop.
E Hong-Kop não vê mais. O tempo passa,
ele se inquieta e se amedronta do sorriso disparatado, e se detém,
tímido porque amoroso também, amoroso pela primeira vez,
perdidamente apaixonado. E a hora suprema se passa sem que ela possa, sem que
ele ouse, confessarem-se mutuamente que os seus
corações não são mais que um e não
serão mais que um nas indefinidas eras que estão por vir. Eles
permanecem mudos, seus lábios, tão próximos que apenas um
beijo os reencontrariam. E a amorosa,
inexorável, levanta-se friamente no céu triste.
A Flor de Jade suspira longamente, uma cortina de
lágrimas enlutou seu rosto. Mas esta feito, ele
deve subjugar-se ao destino. Já nasce o dia, turvo e pálido de
fantasmas. Yu-Tcheng-Hoa derrama-se sobre o mar, mais
diáfana de segundo em segundo. E desesperadamente, Hong-Kop, que agora lúcido, volta a lhe gritar o seu
amor, se esforça e com grandes golpes de remo a persegue, fazendo virar
seu bote sobre a água espumante.
Mas muito tarde, muito tarde. Eis
os dois ao pé do penhasco, à entrada do subterrâneo
obstruído. Os rochedos, tímidos se desligam. Pois ela é a
filha do Dragão e ele é o amado dela.
Um minuto, e Hong-Kop livre,
flutua sobre o Fai-Tsi-Loung de onde o Dragão
o havia exilado. A sentença foi declinada. O mandato de morte abolido.
Mas Yu-Tcheng-Hoa, a preciosa, desvaneceu-se para
sempre nas brumas do sol levante. E nos olhos metálicos do fumante, que
nessa vida nunca riram nem choraram, as lágrimas brotam, muito amargas.
+ + +
Hong-Kop, entretanto tornou-se
um gênio. Tal é a sorte desses que são amados das princesas
imortais. Imortal também, sua vida esta suspensa entre o céu e a
terra, indefinidamente.
A vida de Hong-Kop esta suspensa
entre os rochedos do Fai-Tsi-Loung. No labirinto
inextricável, ele procura Yu-Tcheng-Hoa sem a
encontrar jamais. E os pescadores do Halong e do Kebão acreditam o avistar, pois sua aparência
ainda é de um mortal.
+ + +
Eu que escrevi isso, já o vi em verdade na bruma tonquinesa, já o vi com meus olhos horrorizados:
— Hong-Kop e — Hai-Loung-Wang
— a Serpente-Rei que o persegue sobre o mar. Mas eu sobrevivi porque no
mesmo dia, ao umbral do Circulo Sagrado, eu encontrei Yu-Tcheng-Hoa,
a Clemente. E é desse dia em diante que eu ignoro todas as outras
mulheres.